sexta-feira, 23 de maio de 2008

O Boi Cardil


O BOI CARDIL

Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira.
Recebeu o rei o presente de um boi muito formoso, a que chamavam o Boi Cardil. O rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas, acompanhado do criado fiel para tratar dele.
Teve, certa ocasião, uma conversa com um fidalgo, e falou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu.
— Porque te ris? — perguntou o rei.
— É porque ele é como os outros todos, que enganam os amos.
— Este não!
— Pois eu aposto a minha própria cabeça como ele é capaz de mentir até ao rei!
Ficou apostado.
Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cair o criado na esparrela, e andava triste. Uma filha nova e muito formosa, quando soube a causa da aflição do pai, disse:
— Descanse, meu pai, que eu hei-de fazer com que ele por força minta ao rei.
O pai deu licença. Ela vestiu-se de veludo carmesim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabelos pelos ombros, e foi passear para a tapada, até que se encontrou com o rapaz que guardava o Boi Cardil. O rapaz era rapaz, e ela começou logo:
— Há muito tempo que trago uma grande paixão, e nunca te pude dizer nada.
O rapaz ficou atrapalhado e não queria acreditar naquilo, mas ela tais coisas disse e tais jeitinhos deu que ele ficou pelo beiço.
Quando o rapaz já estava rendido, ela exigiu-lhe que em paga do seu amor matasse o Boi Cardil. Ele assim fez e deu-se por bem pago todo o santíssimo dia.
A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pai como o rapaz tinha matado o Boi Cardil. O fidalgo foi contá-lo ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira.
O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o Boi Cardil, em quem punha tanta estimação. Mandou chamar o criado.
Veio o criado, e o rei fingiu que nada sabia. Perguntou-lhe:
— Então como vai o boi?
O criado julgou ver ali o fim da sua vida e disse:

Perna alva,
corpo gentil,
me fez a mim matar
o nosso Boi Cardil.

O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo:
— Não te mando cortar a cabeça, como tinhas apostado, porque te basta a desonra da tua filha. E a ele não o castigo, porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

D. Dinis